Ambliopia da mobilidade urbana

e sua relação com a “Miopia do Marketing” descrita por Theodore Levit.

Parente menos conhecida da miopia, da hipermetropia e do astigmatismo, é um termo familiar a mim por ter convivido com ele desde os meus 5 anos de idade. A ambliopia, também chamada de “olho preguiçoso” é uma condição que acomete principalmente crianças entre 5 e 8 anos nas quais o globo ótico ainda está em formação. Por diversas razões, um dos olhos passa a se desenvolver de maneira diferente do outro e aos poucos o cérebro, devido ao esforço maior naquele olho, passa a demandar cada vez menos do olho com desempenho inferior, e o que acontece em seguida é que as terminações nervosas não são devidamente desenvolvidas e o olho passa a ficar cada vez mais sem função, até que o poderoso cérebro o ignore completamente. Esse é um dos motivos de vermos tantas figuras históricas com um olho tampado… Para tratar essa deficiência, a recomendação da ciência é acabar com a opção cerebral, obrigando-o a usar o olho prejudicado e contribuindo assim para o seu desenvolvimento. O custo deste processo é manter o olhou saudável tapado e por vezes comprometer o desenvolvimento do mesmo.
Me orgulho de saber isso , sem ter estudado nada de medicina, mas o motivo principal é que eu fui uma dessas crianças com um dos olhos tampados e que se esforçava para enxergar qualquer coisa com aquele olho considerado “preguiçoso” apesar de todo o esforço que fazia.
Por outro lado, o motivo pelo qual relaciono esse tema tão incomum ao universo da mobilidade urbana é o fato de ter relido, há pouco tempo o artigo clássico de T.Levit que fala da miopia do marketing. Ele descreve brilhantemente o processo no qual grandes organizações, reconhecidamente de sucesso daquele tempo, enxergavam o seu mercado como apenas uma parte do que era de verdade. Perderam o “Big Picture” se limitaram a perseguir os seus mesmos consumidores, com seus mesmos produtos e não reconheceram os produtos substitutos e complementares se aproximando …até que, tal como a Kodak, a Greyhound e as montadoras de veículos americanas, essas organizações enxergaram de camarote a perda de seus mercados para concorrentes que estavam um pouco fora do campo de visão dessas empresas.
Me perguntei ao reler o texto, depois de muitos anos, se era isso que estava se passando com o setor de transportes urbanos, apesar de tantos anos de separação da onda de inovações que justificou o estudo de Levit.
Afinal, tudo parece estar fora do eixo… a sociedade vê menos valor nos serviços de transporte público do que este parece gerar, o poder concedente está sempre às voltas com o peso das tarifas urbanas de transporte, ora nos seus cofres, ora nos bolsos dos seus eleitores. Por outro lado, os aplicativos de serviços individuais de transporte agem como inovações disruptivas, com tudo que elas tem de vantagem por atender uma demanda desconhecida e valorizada, mas que lida com o limite destrutivo de estruturas essenciais à sociedade tal como ela existe hoje. Estamos preparados para viver em uma sociedade tão diferente da atual sem nos preocupar se ela será melhor ou pior?
Inegáveis os benefícios do serviço de aplicativos “on demand” “Single rider” “unscheduled” , ainda mais com todos esses termos imponentes e gringos…. Mas a verdade é que estamos com nossa visão sendo desenvolvida ainda, e se os olhos não forem corretamente estimulados, um dos dois pode ser seriamente prejudicado, de maneira irreversível, configurando uma limitação importante e vital para o campo de visão como um todo (leia-se: mobilidade urbana inteligente e sustentável)
A meu ver, e posso estar errado, apesar de tantos anos trabalhando e estudando o tema, entendo que o Transporte Público de Passageiros, em todas as suas tecnologias e modais, é esse olho preguiçoso que se esforça…porém que sem o benefício sistêmico do tratamento correto não florescerá nem será produtivo.
Podemos fazer diversas analogias com os termos ligados à descrição inicial da ambliopia, e podemos identificar os papeis e funções dos elos desse sistema tão integrado e dependente quanto o corpo humano e tão complexo e produtivo quanto a atividade cerebral.
A mobilidade urbana sutentável e inteligente é como o campo de visão ampliado, com cores vivas e atua como um estímulo inegável aos outros sentidos. A partir da superação de barreiras físicas de mobilidade, muitas possibilidades se abrem. São comprovadamente identificadas relações estreitas entre a mobilidade social, o grau de escolaridade, o acesso a postos de trabalho superiores e o grau de mobilidade urbana sustentável. A atratividade urbana para investimentos, atividades ligadas a empreendedorismo e serviços se beneficiam de sistemas integrados e inteligentes de transportes.
Uma vez abordado o assunto da integração, tal como o corpo humano, o sistema de transportes requer visão sistêmica e monitoramento contínuo. Os processos de evolução e desenvolvimento se dão a partir de ações pontuais mas que tem reflexo no sistema como um todo.
O transporte coletivo de passageiros é um elemento importante deste sistema, diria até um dos mais relevantes, mas sofre interferência de outros elos desta intrincada estrutura em rede que envolve a sociedade, o meio ambiente, instituições além dos fatores exógenos e extemporâneos.
A ciência não avança destruindo estruturas e sim reelaborando-as e provendo inovações e desdobramentos, apesar de algumas inovações terem acontecido dessa forma, há um preço alto a pagar …
Mobilidade sustentável e inteligente devem ser pauta permanente se quisermos ampliar nosso campo de visão.

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